Fachos em Machico
















O Arquipélago da Madeira durante os séculos XVII e XVIII foi alvo preferencial de ataques e pilhagens protagonizadas por parte de corsários e piratas, pois, os núcleos populacionais, especialmente os localizados junto à orla marítima, a par das embarcações que navegavam ao largo da Madeira e que com a ilha mantinham relações comerciais, eram um atractivo para o exercício da pilhagem. Dos inúmeros ataques ficaram célebres, os desencadeados pelos franceses em 1566 ao Funchal, e o dos argelinos, em 1616 à Ilha do Porto Santo. A ameaça permanente de pilhagens fez emergir no seio das comunidades, a necessidade urgente de planear e executar estratégias de alarme e defesa da costa, das populações e seus bens. No contexto militar, o primeiro sistema de alarme e defesa no Arquipélago da Madeira foi os fachos. Uma estratégia de defesa utilizada entre os séculos XVI e XVIII. Nos inícios do séc. XIX, apesar da Madeira se encontrar sob a ocupação inglesa, o sistema primitivo de defesa implementado na Madeira, ainda era utilizado pelas gentes locais.


Os fachos desempenhavam uma dupla função: a de defesa e comunicação entre os diferentes núcleos populacionais e inter-ilhas (Madeira e Porto Santo). Os sinais luminosos eram aviso às populações e àqueles que tinham por missão a defesa do território e das suas gentes. O Pico do Facho em Machico, topónimo herdado do facho que outrora ali se acendera, era ponto de comunicação com os picos da Ilha do Porto Santo – Pico do Facho e Pico do Facho da Malhada e ainda, com as Ilhas Desertas que conserva o topónimo Ilha do Facho. O facho de Machico também estabelecia um canal de comunicação com o facho do Pico do Telégrafo na Freguesia do Caniço . Os fachos enquanto sistema de alerta e defesa das populações não foram artefactos exclusivos do Arquipélago da Madeira, encontramos referências a esta estratégia militar no Norte Litoral de Portugal. Neste quadro geográfico de referência acerca da existência dos fachos, podemos enunciar a Torre das Colmeias na Fervença e a Torre entre Ponte da Barca e S. Gião. Mas, a utilização do facho enquanto sistema de apoio à navegação remonta ao tempo da ocupação romana . Em tempos históricos, em pontos estratégicos das margens da costa nortenha portuguesa acendiam-se no alto das torres os fachos que serviam de apoio à navegação, que simultaneamente eram postos de observação e vigilância. No séc. XIX, ao longo da Província do Minho, os fachos eram denominados por “fachos da borda mar”. No território insular português, os fachos também foram perpetuados na toponímia local, referência para a Ilha Terceira no Arquipélago dos Açores. Em matéria de defesa, a costa Sul da Madeira foi dotada do sistema de vigias que tinham por missão a defesa das populações costeiras, enquanto que foi definido para toda a ilha, um sistema de comunicação por sinais luminosos entre si, e ao longo da orla costeira como refere João Adriano Ribeiro. Este investigador apresenta um possível mapa de comunicação entre os fachos espalhados pela ilha. O facho de Machico comunicava com um outro que estava estabelecido em S. Jorge; outro nos Lamaceiros no Porto Moniz; o da Ponta do Pargo era precedido do facho da Calheta e ainda, um outro nas proximidades do Cabo Girão, no Pico do Facho, Concelho de Câmara de Lobos.


Curiosamente, encontramos nas Achadas da Cruz, Concelho do Porto Moniz, o topónimo Cabeço do Facho. Há registo da existência de um posto de vigia na Deserta Grande criado no início do séc. XVII. Esta estrutura militar era suporte de apoio a um canal tripartido de comunicação estabelecido entre Machico, Porto Santo e Ilhas Desertas. A 16 de Abril de 1567 entrou em vigor o Regimento das Vigias decretado pela Rainha-Avó D. Catarina que governava o Reino durante a menoridade do Rei D. Sebastião. Uma medida régia que originou primeiramente, a instalação de vigias na Capitania de Machico, atendendo a que a vila era mais vulnerável a ataques de piratas e corsários. O Regimento das Vigias determinava que o trabalho de coordenação da defesa era atribuído aos oficiais do concelho e ao capitão. Era este oficial que determinaria os lugares das vigias e escolheria os respectivos homens. As vigias seriam feitas em turnos diurnos e nocturnos. Ao turno diurno corresponderia dois homens; um desde o amanhecer até ao meio-dia e o outro, desde essa hora até ao anoitecer, enquanto que, a vigia da noite era feita com três homens. De dia, o alarme às populações seria comunicado por meio de sinais de fumo ou através de fachos, à noite haveria sempre um arcabuz “ao menos sevado he prestes com fogo aceso” pronto a sinalizar o perigo na costa. A vigilância dos mares e da costa do Arquipélago da Madeira constituía um serviço cívico e de vital importância para a segurança e bem-estar das populações. Assim, os homens eram chamados a participar em missões de defesa, hierarquicamente subordinados aos capitães das companhias de ordenanças das diversas localidades, conforme alvará de 1569 promulgado por D. Sebastião, que estabelecia a obrigatoriedade de que ninguém ficasse isento desse serviço. As vigias eram “estações militares e simultaneamente fiscais, que vigiavam o mar, as costas e praias, afim de darem alarme de corsários ou de quaisquer outros navios inimigos, e evitar contrabandos. As vigias eram feitas pelos povos, em pequenas casas fortes, de preposito construídas para resistir ao mar, e evitar surprêsas”. Os homens destacados em missão nas vigias eram apelidados de facheiros ou vigias, porque alguns locais daquelas vigias se designavam por fachos. Curiosamente foi no domínio filipino que foi criado o cargo de Facheiro de Machico. Aos facheiros cabia a responsabilidade de ter lenha e pinhas na coroa do pico, afim de atear-lhe fogo à noite alertando as populações de que “velas inimigas estavam à vista” e depois convocando por toques de sino e búzios os demais, exigindo-se a todos que pegassem em armas ou se colocassem em fuga, conforma a situação de cada povoado. As vigias também eram designadas por fachos, quando instaladas em pontos elevados da orla marítima ou do interior, e cujo aviso era dado às populações por meio de fachos. Os Anais do Município do Porto Santo referem que no Pico do Facho daquela ilha, estava um homem para dar sinal por meio de ramos durante o dia, e de noite para sinalizar através dos aludidos fachos.





No início do séc. XX, algumas solenidades religiosas celebradas em Machico eram ornamentadas com os fachos. Em Agosto de 1903 e 1905, a Festa do Santíssimo Sacramento foi abrilhantada à noite com os fachos. Eles eram concebidos com lenha e pinhas, atendendo a que originariamente era com lenha que o fogo era ateado, alertando as populações para o perigo eminente. No ano de 1904 a mesma ornamentação foi dada à festividade de São Roque. Os fachos eram “… constituídos por montinhos de pinhas crepitantes, em que as raparigas andaram em longa faina pela serra para as poderem reunir. Antigamente, as capas da cebola pelas encostas, transluzia na noite da véspera, contando uma torcida de estopa embebida na minguada concha de azeite. E o vale tremia todo em cintilações e espasmos de luz, em labaredas reinosas num aspecto deslumbrante”.


A tradição dos fachos é uma vivência comunitária profundamente enraizada na cultura popular das gentes da Freguesia de Machico e única na Madeira. Na obra Ilhas de Zargo este retalho da tradição é descrito do seguinte modo: “Consta de fogueiras, queima de pinhas e toros regados de petróleo, que o povo vai buscar à serra dias antes da festa. Para isso reúne-se ao toque de búzios, partindo de noite em romaria e regressando numa enorme bicha, ao som de toques e descantes, as pinhas dentro de sacos, toros velhos às costas e feixes de ramagens secas à cabeça. A queima faz-se na véspera, ao anoitecer, nas encostas sobranceiras à vila, dispostos aos fogachos em figuras alegóricas, letras, nomes e desenhos alusivos à festa”. A tradição dos fachos é uma das vivências etno-religiosas com maior significado simbólico para as gentes de Machico. Um acto de identidade cultural e afirmação da alteridade sociocultural do povo perante os outros. A reprodução cíclica da tradição dos fachos conheceu na década de 60/70 do séc. XX, um período marcado pela decadência da vivência comunitária da tradição provocada pela divisão da Freguesia de Machico em paróquias. De acordo com a história oral, só o Sítio da Misericórdia é que manteve a tradição viva. Do processo divisório resultou na década de 60 as paróquias da Ribeira Seca (1961/64), a do Piquinho (1962/67) e a das Preces (1964/68). Uma nova realidade da administração diocesana marcada por razões de expansão dos núcleos populacionais e com estas, as necessidades religiosas, os fenómenos geográficos e meteorológicos (aluviões) e meios de comunicação. Hoje a tradição é vivida apenas pela população afecta à Paróquia de Machico. É na pessoa do seu pároco, Pe. António Martinho, o principal impulsionador do renascer da tradição dos fachos em Machico que continua a adoptar um papel preponderante na dinâmica sociocultural, que a população local ganhou no acto revitalizador da tradição. É na noite da vigília da Festa do Santíssimo Sacramento celebrada no último Domingo de Agosto, que os fachos iluminam as encostas do Vale de Machico. Um espectáculo de luz repleto de criatividade, humanismo e de um profundo sentimento de religiosidade manifestado desde os primórdios da tradição, que nos dias de hoje ainda mantém essa identidade. As estruturas que corporizam as figuras alegóricas continuam a ser (re)construídas com varas de madeira que alguns dias antes da queima dos fachos, um grupo de jovens e adultos vão buscar à serra. Em alguns sítios da Freguesia de Machico esta prática ritual começou a dar sinais de inovação, um processo marcado pela substituição das ditas estruturas de madeira por metálicas que permanecem inalteráveis ano após ano. Esta mudança favorece o trabalho voluntário, havendo apenas que criar um perímetro de segurança em torno do facho, por forma, a evitar possíveis focos de incêndio em mato. A tradição dos fachos repete-se ciclicamente com as gentes dos Sítios da Graça, Misericórdia, Banda d’ Além, Pé da Ladeira, Pontinha, Paraíso e da Serra d’ Água a investirem a sua mestria e criatividade com o intuito de aperfeiçoar o facho do respectivo sítio. Um acto marcado de forma discreta pela competição sadia na comunidade local e pela preservação da identidade cultural. A este propósito de referir, que o facho do Sítio do Piquinho é excepção à tradição centenária, pois, este é alimentado através do sistema eléctrico. Os fachos são concebidos com o recurso a materiais como: arame, pregos, óleo queimado e bolas de algodão (desperdício). Estes dois últimos elementos são adquiridos pela paróquia junto de empresas regionais e distribuídos aos grupos, segundo as necessidades do facho de cada sítio. A Casa do Povo local apoia esta tradição religiosa e etnográfica com a promoção de um convívio para todos os indivíduos envolvidos na dinamização dos fachos. O espectáculo de fogo e imagem produzido pelos fachos resulta da combinação das bolas de algodão que são embebidas no óleo queimado e presas com arame à estrutura previamente preparada. Estas bolas são colocadas habilidosamente de forma equidistante e simétrica; uma perícia que proporcionará um belíssimo espectáculo. De acordo com dados disponibilizados pela paróquia, em 2007 foram acesos cerca de nove mil bolas. O Sábado é o dia da celebração daquela que é uma tradição centenária. É grande a azáfama nos diferentes sítios. As encostas do Vale de Machico é como que invadidas pelas gentes num labor incansável, lançam-se foguetes desde a manhã até o entardecer, mas, um dos momentos mais festivos do dia, é às 12h com o lançamento de uma salva de foguetes. No berço da freguesia soa o toque do búzio junto ao facho, como que um ritual sagrado que recorda outros tempos em que o som saído do búzio era o alerta às populações dos eminentes ataques corsários. O búzio que outrora foi instrumento de comunicação, hoje assume um papel simbólico na revitalização da tradição e é um dos adereços etnográficos do Grupo de Folclore de Machico. A aproximação da hora de acender dos fachos congrega milhares de pessoas, locais e forasteiros, que nesta noite invadem os espaços públicos do centro e periferia da Cidade de Machico para assistirem a uma tradição singular na região. Os homens distribuídos estrategicamente pela estrutura do facho acendem-no pelas 21h, respeitando a tradição que uma vez mais, se empenharam no reviver este ritual etnográfico e religioso. Depois eles rapidamente descem das encostas guiados por tochas com o objectivo de observarem a queima dos fachos. Os fachos queimam durante cerca de trinta minutos, sensivelmente, logo vão-se apagando espontaneamente como que morrendo, para ciclicamente voltarem a nascer. Depois, segue-se a missa da vigília da Festa do Santíssimo Sacramento na Igreja Matriz de Machico.



Os fachos corporizam ícones religiosos como a custódia, cruzes, o cálice, peixes, barcos (caravela e a traineira) e outros objectos mutáveis no tempo, mas com uma identidade associada aos hábitos e costumes da antiga Vila de Machico. O antigo caminho vizinhal entre o Miradouro Francisco Álvares de Nóbrega e o Sítio do Pé da Ladeira também é ornamentado com os fachos. Importa documentar que parte do Caminho do Leiria, entre o estaleiro e o cais era “ornamentado” a preceito da tradição, de forma a acompanhar os outros fachos. A tradição em estudo sugere duas possíveis leituras. Uma leitura com uma forte conectividade religiosa, pois, os objectos cristãos assumem uma forte posição na reprodução comunitária da tradição que desde sempre, esteve associada à vivência cristã. Recorde-se que os fachos foram adorno de algumas festividades religiosas no início do séc. XX. Os fachos poderão ser interpretados como forma de Acção de Graças ou será um antigo acto de agradecimento que foi conquistando um espaço na memória colectiva e transposto para a vida religiosa local? O empenho da paróquia local no apoio à dinamização da tradição dos fachos poderá motivar uma maior incidência para esta leitura. Uma outra leitura é sugerida pela relação de cumplicidade que as gentes da Freguesia de Machico têm com o mar. Uma relação testemunhada pelas gentes daquela que foi uma vila piscatória com raízes na indústria naval, testemunho desta actividade era o antigo estaleiro. Os símbolos religiosos de que a tradição dos fachos se reveste têm uma dimensão social relevante. As cruzes, ícones religiosos são símbolos enriquecidos pela tradição cristã, eles simbolizam o Cristo Crucificado. A barca que ganha uma dimensão globalizante suscita outras leituras. Uma associada à vida socioeconómica da comunidade local, a faina; e uma outra leitura de cariz religioso. A barca simbolismo da viagem, da travessia ou da vida terrena dos cristãos ou até mesmo, a barca de Pedro. O elemento central do facho é o fogo. Ele simboliza o espírito divino, a purificação. O fogo é sinal de presença e acção do Criador, é expressão da santidade e da transcendência divina. O elemento fogo expressa vida e luz em oposição às trevas. Os peixes outro elemento caracterizador das figuras alegóricas corporizadas nos fachos. Eles simbolizam a figura de Cristo para os primeiros cristãos. Será a representatividade do milagre da multiplicação do pão e dos peixes ou o milagre operado no lago onde Pedro e os companheiros pescavam? Facto é que, a tradição dos fachos não é um ritual comunitário circunscrito ao espaço geográfico da Freguesia de Machico. Na Galiza a “Festa dos Fachós” é uma expressão cultural comunitária. Em terras galegas a celebração dos fachos assume um ritual distinto daquele que anualmente tem lugar em Machico. No Concello Castro Caldelas a “Festa dos Fachós” acontece em Janeiro com a população local a carregar pela mão, um facho acesso (um grande feixe de palha, à semelhança de uma tocha) que à noite, os habitantes da vila percorrem em procissão pelas ruas. Um ritual que culmina no adro da igreja com a união de todos os fachos, originando uma grande fogueira em redor da qual, jovens e velhos dançam até de madrugada. Um acontecimento marcado pela música e pelas manifestações de alegria. As origens desta celebração galega são desconhecidas. Há teorias que a associam à tradição cristã nomeadamente, com a busca do corpo do mártir São Sebastião, pois esta tradição também é chamada de Festa de San Sebastián. Uma outra teoria coloca este ritual cíclico em acontecimentos da vida social da vila galega. A mesma tradição galega, a “Festa dos Fachós” é celebrada no Concello Redondela. Nesta localidade a explicação para a manutenção destas práticas comunitárias aproxima-a de uma componente reivindicativa para a defesa do património natural local. O certo é que a celebração da “Festa dos Fachós” está documentada desde meados do séc. XVIII.



Na nossa perspectiva o desenvolvimento cultural de uma comunidade tem que estar sustentado nas sinergias do local. Os fachos na Freguesia de Machico são um recurso cultural e patrimonial que tem um percurso enquanto tradição fortemente enraizada na memória colectiva das gentes de Machico. As instituições com responsabilidades directa nas políticas de desenvolvimento, têm que abrir um canal de promoção que resgate a tradição dos fachos, pois, pensamos que ela é um possível cartaz turístico-cultural do concelho. A aliança entre a identidade comunitária e o património cultural é uma simbiose estruturante para a sustentabilidade de novos projectos no domínio do turismo cultural e religioso, uma modalidade com fortes potencialidades de crescimento e conquista de um espaço próprio na política turística regional.



















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